sábado, 30 de maio de 2009

Depois da farra, a austeridade - 16/10

O dia estava só começando

Depois da farra da noite anterior, retomamos a compostura. Levantamos cedo, tomamos um bom café da manhã, com pão caseiro, sucos, queijos, quitutes e outras aventuras. Fechamos a conta, a contragosto, e saímos para conhecer Guarda, uma das cidades mais altas de Portugal, a 1.056 metros acima do mar. Nessa época do ano, outubro, a cidade tem uma temperatura agradável e um céu bem azul.

Não perdemos tempo pesquisando o comércio, mas, de plano, desconfio que tem um pouco de tudo o que uma cidade precisa para a sua sobrevivência. Sem ostentação, sem muita variedade, sem muita sofisticação, mas com o suficiente para atender os desejos de um consumidor bem comportado, como, me parece, são os portugueses.

Entrada do Museu da Guarda

A nossa primeira parada foi no Museu da Guarda, instalado no antigo Seminário Episcopal, uma construção de 1600 e qualquer coisa. O prédio, de blocos de granito, é austero como outros que vimos na cidade, de linhas despojadas, frias e límpidas. No seu interior, possui um pátio enfeitado com hortências floridas que poderia ser um bom lugar para meditações, mas não dispõe de nem um banco para sentarmos e ali nos deixarmos ficar. Uma pena.
O pátio interno do Museu da Guarda
O Museu abriga perto de 4 mil e 800 peças de coleções de arqueologia, numismática, esculturas sacras dos séculos XIII a XVIII, pinturas e armarias. Só para terem uma idéia, entre as peças, estão duas espadas da Idade do Bronze, um granito policromado do século XIII, representando Nossa Senhora da Consolação e armarias do século XVII ao século XX, que ajudam a documentar a evolução das armas neste período. Os rapazes ficaram impressionados, especialmente com uma miniatura de canhão, em bronze, apelidada de Josefina, datada de 1773 e, ainda, com uma pistola de palma de mão, com carregador circular em aço, decorada com aplicações em madrepérola. A pistola, do século XIX/XX, tem um cano circular em aço, muito doido, e, na extremidade oposta, o gatilho. Não sei se é muito prática, mas que o inventor dessa geringonça viajou na maionese, não tenho dúvidas.
Eu me impressionei com as pinturas e com uma exposição, não sei se temporária, de fotos, objetos e descrição de costumes da região. Me diverti com os painéis de trava-línguas e anotei um deles para guardar de lembrança e passar para os meus netinhos que, um dia, espero, virão:






Tenho uma capa chilrada, bilrada e gabripatalhada que
a levei à chilradoira, bilradoira e gabripatalhadoira,
para que ma chilrasse, bilrasse e gabripatalhasse,
que eu pagaria a chilradura, bilradura e gabripatalhadura.




Do Museu da Guarda saímos em direção à Catedral da Sé, uma das construções mais impressionantes que vi em Portugal. Mas, antes, fomos obrigados a fazer uma parada. Enquanto subíamos uma das ruas que nos levaria até o alto da cidade, onde fica a Sé, nos deparamos com a Casa do Presunto, com seus embutidos, salsicharias, queijos e outros atrativos. Foi irresistível: compramos um queijo da Serra e meio quilo de uma linguiça defumada super saborosa. Antes do almoço, fizemos uma boquinha com a nossa matula, mas nossa ideia era mesmo trazê-la conosco para dividi-la com os amigos. Até tentamos, só que a alfândega não deixou. São uns cabras bem encrenqueiros e achamos melhor não enfrentá-los. Ainda bem que beliscamos algumas porções durante a viagem.

Por fim, alcançamos a Catedral da Sé, um monumento à austeridade. É uma construção imponente, do século XIV, de aspecto fortificado, gigantesca e belíssima, toda em granito. Mede 52m de comprimento, 16,5m de largura e 20 de altura! Do prédio original, erguido em 1119, não restou nada. Mas o que sobrevive, foi iniciado em 1390. A obra se arrastou por 150 anos e, dizem, só foi concluída durante o reinado de D. Manuel I, graças ao empenho do bispo D. Pedro Gavião, a quem se deve a elevação dos edifícios, a construção das abóbadas, das torres e do pórtico principal. E ainda reclamam das nossas obras inacabadas...Mas aqui é outra história mesmo. Imaginem as dificuldades que enfrentaram para levantar essas paredes, de 20 metros de altura!



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A Catedral da Sé tem 20 metros de altura, é uma imponência!



As gárgulas assustadoras!

Segundo os entendidos, a Catedral da Sé de Guarda é um dos últimos monumentos portugueses dos tempos do gótico, apesar de ostentar evidências também da influência manuelina. Eu, que não sou uma entendida, fiquei muito impressionada com as gárgulas que rodeiam todo o entorno da construção. Parecem demônios nos tentando e nos obrigando a entrar correndo na Catedral em busca de proteção. Coisas da minha imaginação.

As cem imagens esculpidas no altar da Sé

Contrastando com o exterior um tanto pesado da Catedral, o interior encanta pela sua leveza, um efeito provocado não sei se pela sua altura descomunal ou se pela harmonia das abóbadas ou se pelo seu ambiente extremamente clean. Pelo menos essa foi a impressão que me ficou. Lá dentro, me encantou as meias colunas espiraladas e as 100 figuras entalhadas no alto da peça de altar, executadas na oficina de João de Ruão, como dizem os portugueses, ou Jean de Rouen, como diz o guia da Folha de São Paulo. Também observei, como em outras igrejas onde estivemos, as inscrições, talhadas no chão de pedra, de nomes de pessoas que, provavelmente, estão ali enterradas. Enfim, uma visita obrigatória para quem está passando por perto.



Cenas das ruas de Guarda

Ainda rodamos em volta e no entorno da Sé por um bom tempo. Acho que estávamos tomados pelo encantamento dessa construção. Queríamos vê-la de todos os ângulos possíveis. Queríamos mais informações também, mas, infelizmente, não encontramos ninguém para nos ouvir. Com isso, já sabem, chegou a hora do almoço. Cortamos algumas ruas abaixo da Sé e encontramos o Solar da Beira, que nos pareceu muito simpático e com preços bem convidativos. Dessa vez, pedimos um bacalhau ao brás e um lombo assado. De entrada, a sopinha básica de legumes, uma refeição já quase suficiente para a nossa fome.

O bacalhau ao brás estava uma delícia e sua receita não é tão difícil assim para os não iniciados na alta gastronomia. Segundo as orientações da cozinheira, passadas em bom português, é o seguinte: refogue a cebola, o tomate e o bacalhau destroçado numa frigideira com um tanto bom de azeite. Em outra panela, frite a batata, picada em tiras bem fininhas (eu acho que é ralada com aquele corte maior). Depois, misture tudo numa panela só e jogue um ovo por cima. Foi isso que entendi, mas ainda não testei, porque gosto mesmo é de bacalhau a Gomes de Sá.

Terminada a refeição, ainda andamos um pouco pela cidade antes de buscar o carro e pegar de novo a estrada. Foi uma manhã muito proveitosa!

No meio do caminho - 15/10

Vista de casarão na cidade de Viseu
Se foi difícil encontrar uma entrada para o Porto e depois do Porto para Vila Nova de Gaia, foi muito fácil sair. Não sei se porque já estávamos um pouco mais distraídos e nos deixamos levar ao sabor do vento ou se porque, de fato, é mais fácil encontrar as saídas. O fato é que pegamos a estrada sem nem perceber. Rodamos um tempo, apreciando a paisagem e tentando relembrar alguns detalhes do passeio para, mais tarde, anotá-los, assim que chegássemos em Guarda, nosso próximo destino. Mas a conversa rendia pouco, porque, mais uma vez, adivinhem.....estávamos famintos. Claro que fizemos um lanche no Porto, mas só um lanche e já eram quase cinco horas da tarde. A sorte é que já nos aproximávamos de Viseu, uma parada no meio do caminho.


Cenas do centro de Viseu

Vou confessar. Não achei muita graça em Viseu. Me pareceu uma Divinópolis com história, sem nenhum demérito para as duas, mas sem nenhuma atração especial para nós, turistas perdidos no meio do mundo. Viseu está no centro da região vinícola do Dão e, segundo o nosso guia de cabeceira, abriga construções belíssimas dos séculos XV e XVI. Mas, como já disse, a nossa fome era muito maior que a nossa curiosidade histórica. Rodeamos a primeira praça e paramos na primeira lanchonete que encontramos: Café do Bar. Era até charmosa, com retratos de escritores portugueses e mesinhas decoradas. Mas o balcão de salgados estava completamente desfalcado.

Entramos e saímos. Andamos mais uma quadra e entramos na lanchonete do povão. Nem prestei atenção no nome, mas no balcão farto de guloseimas e salgadinhos e nas paredes, decoradas com bandeiras de times portugueses: do Porto, Benfica e, especialmente, do Sporting. Bem no fundo, reinava triunfante um bandeirão verde do time e, ao lado, uma foto da equipe, provavelmente a campeã de algum campeonato. Numa das mesas da lanchonete, identificamos o personagem da cidade: um senhor, já de alguma idade, escondido dentro de um sobretudo preto e acomodado numa das mesas centrais da lanchonete. Apesar de bem posicionado, parecia alheio ao movimento a sua volta. Lia avidamente um livro de páginas já amareladas e, só de vez em quando, levantava a cabeça. Ainda sobre a mesa, papéis em branco, uma caneta e dois outros livros empilhados, ao lado de um xícara que, suponho, fosse de café. Sobre uma das cadeiras, pousava serenamente um chapéu preto, de abas bem comportadas.

Casarão, na saída de Viseu

Viajamos. Será que ele pensa que é um Fernando Pessoa? Será que ele é Fernando Pessoa? Será um poeta? Ou será que está escrevendo um grande romance? Será que Viseu é sua personagem? De tempos em tempos, o senhor levantava a cabeça e nos olhava com seus olhos azuis. O que será que estava pensando? Será que também nos encontrara como personagens de sua história? Depois desviava os olhos e fitava a rua, onde alguns jovens, em rodinha, jogavam conversa fora. Respirava fundo e voltava para sua leitura silenciosa. Não ousei fotografá-lo, claro, mas sua imagem está nitidamente gravada nas minhas lembranças dessa cidade.

O por do sol na estrada, rumo a Guarda

Já estava entardecendo e tínhamos ainda um compromisso com Guarda, por isso não nos permitimos mais devaneios e pegamos estrada de novo. Foi uma boa decisão, pois pudemos assistir ao por do sol e relembrar os fins de tarde em Belo Horizonte. Chegamos em Guarda por volta das 7 horas da noite, a lua já estava alta e, mais uma vez ficamos meio perdidos. Mas os portugueses são muito prestativos. Encontramos, logo na entrada da cidade, Seu Vieira que, prontamente se dispôs a nos guiar até o centro e nos indicar algumas opções de hospedagem.

Graças a deus, esse também estava lotada. Era uma nota!

Tentamos, primeiro, os residenciais, por serem mais charmosos. Mas estavam todos lotados. Fiquei boba. Estávamos numa ponta perdida de Portugal e, ao que parece, junto com algumas centenas de outros turistas, que também imaginavam estar num fim de mundo. Mas seu Vieira explicou: não são bem turistas. Estão construindo um shopping na cidade e os trabalhadores estão espalhados por essas hospedagens. Partimos então para opções mais caras, mas também não tivemos sorte. O Residencial Santos, por exemplo, que nos pareceu bastante sofisticado, não tinha vagas. Por fim, seguimos o conselho de Seu Vieira e fomos para o Hotel Turismo.

Fachada do Hotel Turismo. O atendimento é nota mil!

Ele havia nos advertido que este era um hotel mais velho, mas havia sido reformado recentemente e poderíamos dar sorte de ser bem recebidos. Demos muita! Foi o melhor lugar onde nos hospedamos. Era uma construção mais velha mesmo, não antiga, mas extremamente confortável. Ficamos num apartamento imenso: hall de entrada, sala de estar, quarto imenso, com a cama de casal e mais uma, onde os meninos poderiam até ter dormido, se soubéssemos. Tinha ainda penteadeira, cômoda, closet e um banheirão de todo tamanho, com água farta e quentinha. O quarto dos meninos não ficou por menos.


Uma das vistas do quarto do hotel

Era um quarto bem grande também, com duas camas enormes, cômoda e um banheirão de todo tamanho, dava até para dar uma festa lá dentro, além de um varandão com vista para a cidade. Tudo de bom!



Detalhes da super suíte

Curtimos um pouco o conforto do quarto, pois sairíamos logo cedo pela manhã. Abrimos todas as portas de armários, vasculhamos as gavetas, pulamos nas camas de colchão de mola, demos boas gargalhadas e posamos para foto no sofá de quatro lugares da sala de estar da suíte. Os meninos aproveitaram a banheira, que mal conheciam, para tomar um banho principesco e ainda fizemos hora no varandão, contando estrelas. Só depois de um tempo, descemos para jantar. Resolvemos ficar por ali mesmo e conhecer o restaurante do hotel, instalado num salão imenso, com mesas redondas enormes, forradas com toalhas brancas e enfeitadas com um jarro de flores naturais.

Pedimos o de sempre: bacalhau. De entrada, um pão caseiro com uma porção de queijo da Serra da Estrela e um vinho tinto da região. Divinos. O queijo da Serra é feito a partir de leite de ovelhas e fabricado no inverno. É uma das preciosidades de Portugal. A mostra que experimentamos, segundo o maitre, já estava curada, pois estávamos num fim de safra, mas, na sua opinião, são os melhores queijos. Tem uma casca mais firme por fora, mas, por dentro, conserva a sua consistência cremosa. O sabor é marcante sem deixar de ser delicado. Foi uma grande entrada, melhor que o principal. Não que o bacalhau não estivesse bom, mas o queijo da Serra foi a novidade do dia. Pena ter deixado a máquina no quarto. Não pude registrar esse grande momento, para alívio dos rapazes. Depois disso tudo, apagamos.