Em Coimbra, especialmente, dedicamos boa parte do nosso tempo visitando a universidade e, com isso, deixamos de andar a toa pela cidade e de descobrir outros de seus atrativos. Mas desde o primeiro instante, a cidade nos conquistou. Concordamos até o final que foi a mais acolhedora e a mais alegre. O fato de ser uma cidade universitária contribui muito para criar um clima mais descontraído, mas não só por isso. O povo é mais comunicativo, mais espontâneo e disponível. É isso.
Portão de ferro de 1634, que leva ao pátio interior da universidade. É emoldurado por figuras que representam as faculdades originais: Direito, Medicina e Teologia.
Só não pudemos ver a cerimônia da Queima das Fitas, que acontece sempre no mês de maio, quando termina o ano acadêmico. Essa é uma festa tradicional entre os estudantes e tem sua origem nos primeiros anos de funcionamento da universidade. Para indicar a que faculdade os estudantes pertenciam, eles pregavam fitas coloridas a suas togas: vermelha para Direito, amarela para Medicina e azul para Letras. No final do ano, reuniam-se para queimar as fitas, simbolizando o encerramento de uma etapa. Hoje, a Universidade de Coimbra reúne várias outras faculdades, e a tradição continua. Entre os novos cursos, está o de Comunicação, que é representado também pela cor vermelha. Sei disso, porque uma caloura do curso me contou. Ela estava angariando fundos para sua formatura e me vendeu um lápis por dois euros, com uma bruxinha de chapéu vermelho na ponta. Contribui com boa vontade, pois a causa é justa.
O dia que chegamos à Coimbra coincidia, no entanto, com o início do ano letivo. Pelo menos foi isso o que os estudantes nos explicaram para justificar as brincadeiras que faziam com os novatos. Eles estavam enfileirados num pátio e eram obrigados a percorrer as ruas do campus, cantando e dançando uma dança muito esquisita. Mas não estavam envergonhados, pelo contrário, se divertiam também e riam muito. Abaixo, foto dos veteranos com suas togas, dos telhados coloridos da universidade, do prédio da Faculdade de Medicina e do portal da Igreja de São Miguel.
A Real Capela de S. Miguel
Não é permitido tirar fotos no interior dessa igreja. Quem quiser conhecê-la terá mesmo de ir até lá. E não vai perder a viagem, porque ela é belíssima. Foi construída no início do século XVI. Quando a universidade adquiriu o Palácio Real da Alcáçova para se instalar definitivamente em Coimbra, levou junto essa capela, que manteve o privilégio Real. O que isso significa, não sei. Provavelmente, a Real capela de São Miguel deveria ser frenquentada pela família real, com exclusividade ou não. Pode ser isso.
Mas me contaram, orgulhosos, que, no dia 25 de novembro de 1663, dia de Santa Catarina, foi o Padre António Vieira quem celebrou a missa e proferiu mais um de seus brilhantes sermões, esse dedicado à santa, padroeira da Universidade de Paris e invocada como protetora dos filósofos. O tomo 2 do Sermões - Padre António Vieira, lançado em 2003 pela editora Hedra e organizado por Alcir Pécora, traz a íntegra desse sermão. Só para situá-los: Catarina era filha de nobres e viveu na Alexandria nos primeiros séculos da era cristã. Bonita e inteligente, foi pedida em casamento pelo imperador romano Maxêncio. Mas ela rejeitou o pedido, reafirmando a sua intenção de dedicar a vida a Deus. O imperador, enfurecido, convocou 50 filósofos para convencê-la de que Cristo não poderia ser o filho de Deus. Catarina, além de ter conseguido responder os questionamentos dos filósofos, converteu-os ao cristianismo, enlouquecendo o imperador que mandou-a matar.
No sermão, Vieira toma Santa Catarina como modelo de sabedoria e destaca da sua pregação três dificuldades que enfrentou quando teve de debater com o conselho de filósofos: o fato de estar sozinha contra muitos opositores; de ser mulher e ter de convencer aos homens; e a resistência dos intelectuais da sua época de reconhecê-la por mestre entre os sábios. Conforme diz o texto de Alcir, na apresentação deste sermão, Vieira, na sua fala, exorta os universitários de Coimbra a imitarem duas qualidades dos filósofos, que reconheceram a verdade dos argumentos de Santa Catarina: a docilidade, isto é, a conformidade com a verdade, e a constância, que os levou à morte, por resistirem à vontade do Imperador. Vale a pena ler o sermão de Santa Catarina - Virgem e Mártir, pela beleza dos textos de Vieira, pela sua sabedoria e, quando nada, só pela sua introdução, bastante oportuna para o momento que vivemos. Nela, Vieira fala sobre a expressão Ne forte, que adota como argumento do seu discurso.
Ne forte? Quer dizer: para que não por algum caso; para que não por alguma desgraça; para que não por algum descuido próprio, ou diligência e indústria alheia. É, Ne forte um advérbio, sempre vigilante, mas indeciso: é uma suspensão do que é: é uma dúvida do que será: é um cuidado solícito do que pode ser. É um receio temeroso do futuro, não esquecido do passado, nem divertido do presente; e neste círculo de todos os tempos acautelado para todos. Deriva-se a palavra Ne forte daquela que o mundo chama Fortuna, e é uma força tão poderosa e tão forte, que desarma a mesma fortuna de todos os seus poderes; porque a quem estiver cuidadoso do que ela pode fazer ou desfazer, nunca lhe acontecerá que diga - não cuidei - máxima da Prudência.
E por aí afora vai, até chegar à história de Catarina, quando Vieira retoma a expressão Ne forte para compará-la à expressão Si forte, respondida por Catarina ao imperador rejeitado. E Vieira explica que, se Ne forte é advérbio seguro e frio, o Si forte é animoso e ardente. O primeiro fecha as portas ao temor, o segundo, abre-as à esperança. O primeiro é freio para a cautela, o segundo, espora para a ousadia. Ne forte diz: Não te arrisques; Si forte diz: Aventura-te. Finalmente, como explica Vieira, o primeiro tem por efeito evitar o mal, que suspeita; e o segundo, empreender e conseguir o bem a que aspira. Mais ou menos isso. E não é esse o dilema que vivemos hoje para tentar compreender as barbaridades que temos assistido? Quem deles está a nos dizer Ne forte ou será Si forte? Ou não pensam mais nisso, apenas se enfrentam por um pedacinho de terra?
A Biblioteca Joanina
As visitas à Biblioteca Joanina são guiadas, cronometradas e cheias de não me toques. Isso não é uma crítica. Concordo plenamente com todas as restrições e acho que a simples entrada na Casa da Livraria, como era conhecida anteriormente, é um ato de grande boa vontade da universidade para com nós, pobres mortais ignorantes. E a possibilidade de consulta às publicações ali guardadas, uma prova, rara reconheço, mas uma prova da generosidade da academia para com seus pares. Um privilégio. Essa generosidade se mostra ainda maior quando a universidade nos oferece a possibilidade de obter, por meros 10 ou 15 euros, não me recordo mais, um cd com as imagens do interior do prédio e o texto integral das principais obras ali preservadas. Não vou piratear o cd para ninguém, não faria isso: tirar de vocês a chance de experimentar a emoção de entrar ali pela primeira vez, de corpo e alma, e apreciar, com seus próprios olhos, a fantástica construção de 1717 e imaginar, com toda força da nossa criatividade, as mil e uma histórias que se escondem dentro daqueles livros? Nunca! Na foto, a porta de entrada da Biblioteca.
Para nós, foi uma benção poder estar ali e ser convidados para entrar naquele templo. Tivemos de esperar uns 30 minutos, até que um grupo saísse e o nosso fosse liberado para entrar, mas nem percebemos a demora. Quando as portas se abriram, foi como se entrássemos num sonho. O prédio tem três andares, mas o acesso está liberado apenas para o primeiro piso, onde estão acomodados cerca de 40 mil volumes dos 200 mil da coleção da Biblioteca. É impressionante a qualidade da conservação de cada uma dessas obras. Quem tem livros em casa sabe bem como eles se deterioram facilmente. Principalmente, quando ficam pegando poeira nas estantes por anos a fio.
Mas o edifício é uma perfeita caixa-forte, proporcionando um ambiente absolutamente estável no seu interior e favorável à preservação das obras, ao longo de todo o ano, como explicou nossa guia. De fato, a temperatura no interior da Biblioteca Joanina é constante, faça chuva ou faça sol. Varia em torno de 18° a 20° C e a umidade relativa do ar se mantém, da mesma forma, em torno de 60%. Para obter essas condições, as paredes exteriores do edifício tem uma espessura de 2 metros e 11 centímetros e seu interior é revestido, integralmente, com madeira, apesar de dar a impressão de que suas colunas e teto são de mármore ou de qualquer outra pedra. Mas a conservação deste acervo tem outros segredos. Para enfrentar um dos maiores inimigos dos livros, os insetos papirófagos, todas as estantes da Biblioteca são de madeira de carvalho, que, além de serem extraordinariamente densas, dificultando a penetração dos bichinhos, exala um odor bastante providencial, que os repele, mantendo-os distantes dos livros.
Se, ainda assim, alguns desses insetos desenvolverem uma resistência à ação do carvalho, ficarão surpresos com a inventidade dos primeiros gestores da Casa da Livraria. Pensando nisso, eles já tinham providenciado outras estratégias para, em qualquer situação, saírem vitorioso dessa luta inglória. Desde os primeiros tempos, uma colônia de morcegos habita a Biblioteca e, durante a noite, dão cabo dos bichinhos mais resistentes que, eventualmente, aparecem por ali. E para cuidar dos morcegos e evitar que sujem os móveis e livros da coleção, todos os dias, ao fechar a Biblioteca, um funcionário cobre todas as mesas com toalhas de couro e, pela manhã, retira-as e limpa toda a biblioteca. Todos os dias! Já pensaram?
Mas esses cuidados, com já disse, não impedem os pesquisadores de consultarem esse acervo. Quando uma obra é solicitada, o exemplar é transferido para a Biblioteca Geral da Universidade, por um funcionário, ficando lá à disposição do pesquisador. Olhem só! A UFMG, por exemplo, tem um acervo bastante interessante e muito requisitado sobre as obras e anotações de Guimarães Rosa. A consulta a esse material não é proibida, mas são tantos obstáculos a serem vencidos que ouso dizer, sem remorso, que é quase impossível para o pesquisador ter acesso a esse acervo e humanamente impossível para nós, pobres mortais. São esses pequenos detalhes que fazem a diferença. Ou não?
Para ninguém ter dúvidas de que essa possibilidade de consulta às obras da coleção da Biblioteca Joanina é uma condição rotineira, observem a foto acima. Por acaso estávamos ali, por acaso alguém precisava consultar uma obra deste acervo e, por acaso, a transferência do livro estava sendo feita exatamente no momento em que passávamos por lá. É assim que funciona. Observem o tamanho dos livros daquela época. Eram grandes verdades que estavam sendo ditas, não é não? Hoje, preferimos os livros de bolso, pequenas verdades, uma de cada vez. Também tem suas vantagens.Para voltar a Cidade Baixa, pegamos uma espécie de elevador, que desliza ladeira abaixo em cima de trilhos e atende toda a comunidade, especialmente os estudantes. Não é baratinho, mas facilita muito a vida. Abaixo, uma vista da cidade do alto desse elevador. É linda mesmo!
Voltamos para o hotel já bem no final da tarde e saímos novamente só para fazer um lanche e experimentar os pastéis de Tentúgal, uma especialidade da região. São feitos de ovos também, mas não são tão bons quanto os de Belém e de Santa Clara. Tem um gosto mais forte, parecido com o de ovo mexido com açúcar. Abaixo, foto dos pastéis de Tentúgal e dos anjos que enfeitam a rua Sofia.
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