sábado, 10 de janeiro de 2009

Coimbra - 13 a 15/10

Um barco à deriva no Rio Mondego

Chegamos à Coimbra já anoitecendo e sem um pouso certo para passarmos a noite. A sorte é que sempre tem um Ibis dando sopa no caminho. Assim que entramos na cidade, outdoors espalhados por todo canto nos indicavam o trajeto mais rápido para se chegar ao hotel, por isso não ficamos polemizando muito sobre o que seria melhor. Estávamos cansados e, para variar, com fome e querendo mais chegar logo. Nesse caso, a pressa não foi inimiga da perfeição. O Ibis acabou sendo uma boa escolha. Além de um preço bem acessível, o hotel fica em frente ao Parque da Cidade ou Parque Manoel Braga, uma área verde muito bem cuidada, às margens do Rio Mondego, onde fizemos boas caminhadas.
Tudo bem, o hotel não é um luxo: a porta do nosso quarto não fechava direito e por duas vezes ficou aberta, mas acho que ninguém entrou para bisbilhotar nossas bagagens; as toalhas cheiravam a vinagre, uma opção ecológica para desinfetar as roupas de cama e banho, sem agredir o meio ambiente; e não tinha geladeira no quarto. Têm outros poréns, mas são todos irrelevantes. O que importa é que os quartos são limpinhos e confortáveis e a vista da nossa janela para o parque era um imenso descanso. Mesmo assim não perdemos tempo, depois de nos acomodarmos, saímos para pesquisar o terreno, fazer uma primeira caminhada no parque e procurar algum lugar para lancharmos. Foi moleza. Bem ao lado da parque, numa espécie de marina, encontramos um conjunto de bares, cafés e restaurantes, com opções para todo gosto. Escolhemos o Mondego Irish Pub, com um cardápio apetitoso de sanduíches. Devoramos alguns hamburgues, provamos o chopp português e jogamos conversa fora até enjoar. Depois fomos dormir, porque ninguém é de ferro e o dia tinha sido bem puxado.
Na manhã seguinte, levantamos cedo e retomamos nossa busca, agora, por uma cafeteria ou pastelaria, como os portugueses costumam chamar suas lanchonetes. Esqueci de dizer, no preço acessível do Ibis não está incluído o café da manhã, que é opcional mediante o pagamento de uma taxa extra. Mas preferimos ir à luta e não tivemos dificuldades para resolver esse problema. A poucos passos do hotel, encontramos um café bem honesto e saboroso. Só não sei se era uma pastelaria ou uma cafeteria, porque a lanchonete, engraçadamente, não tem nome. E o que importa, se tem um café novinho e quentinho, uma boa variedade de pãezinhos deliciosos, sucos e um atendimento acolhedor? Viramos frequeses.
Barriga cheia, pé na areia. Saímos pela avenida Emídio Navarro, cortamos à esquerda na Olivença e seguimos pela rua da Alegria até encontrarmos um caminho que nos levasse até a Universidade de Coimbra. Pegamos a primeira rua que subia, a Couraça de Lisboa e nos demos bem. Na primeira parada para tomar folego, avistamos, do outro lado do Rio Mondego, o Convento de Santa Clara-a-Nova, construído entre 1649 e 1677 e projetado por um professor de matemática, João Turriano. O convento abriga também o túmulo em prata de Santa Isabel. Infelizmente, não tivemos tempo para visitá-lo, mas, como já disse, ficou para uma próxima vez, que terá de haver, já que foi impossível conhecermos tudo o que gostaríamos em míseros 10 dias.

Parte do convento serve hoje de quartel do Exército. Vai entender.

Em Coimbra, especialmente, dedicamos boa parte do nosso tempo visitando a universidade e, com isso, deixamos de andar a toa pela cidade e de descobrir outros de seus atrativos. Mas desde o primeiro instante, a cidade nos conquistou. Concordamos até o final que foi a mais acolhedora e a mais alegre. O fato de ser uma cidade universitária contribui muito para criar um clima mais descontraído, mas não só por isso. O povo é mais comunicativo, mais espontâneo e disponível. É isso.
Hoje tenho a impressão de que não percorremos os caminhos mais convencionais para se chegar até a Universidade de Coimbra, apesar de termos sido bem sucedidos na nossa empreitada. As fotos que seguem abaixo são o registro dessa caminhada: uma casa com as roupas na janela, um sobrado à venda, uma vista da cidade e o Aqueduto São Sebastião.



Universidade de Coimbra

O nosso maior interesse ao visitar a Universidade de Coimbra era o de conhecer a famosa Biblioteca Joanina, que reúne cerca de 200 mil volumes, dos séculos XVI, XVII e XVIII, representando o que de melhor havia na Europa culta daquele tempo. Mas, claro, a universidade tem também sua história. Fundada em 1290, é uma das mais antigas do mundo. Transitou entre Lisboa e Coimbra por um bom tempo, até que em 1537 se fixou definitivamente na cidade, no prédio do palácio real de Coimbra. As fotos abaixo mostram o portão de entrada de um dos pátios da universidade e a escadaria de um dos seus prédios centrais. A esquerda dele está o prédio da Faculdade de Direito. Ao fundo, vocês poderão observar uma falsa nuvem cortando os céus de Coimbra. Tanto lá, como cá, elas estão em todo lugar.

Portão de ferro de 1634, que leva ao pátio interior da universidade. É emoldurado por figuras que representam as faculdades originais: Direito, Medicina e Teologia.

Eça de Queirós foi um dos alunos ilustres de Coimbra

Só não pudemos ver a cerimônia da Queima das Fitas, que acontece sempre no mês de maio, quando termina o ano acadêmico. Essa é uma festa tradicional entre os estudantes e tem sua origem nos primeiros anos de funcionamento da universidade. Para indicar a que faculdade os estudantes pertenciam, eles pregavam fitas coloridas a suas togas: vermelha para Direito, amarela para Medicina e azul para Letras. No final do ano, reuniam-se para queimar as fitas, simbolizando o encerramento de uma etapa. Hoje, a Universidade de Coimbra reúne várias outras faculdades, e a tradição continua. Entre os novos cursos, está o de Comunicação, que é representado também pela cor vermelha. Sei disso, porque uma caloura do curso me contou. Ela estava angariando fundos para sua formatura e me vendeu um lápis por dois euros, com uma bruxinha de chapéu vermelho na ponta. Contribui com boa vontade, pois a causa é justa.

O dia que chegamos à Coimbra coincidia, no entanto, com o início do ano letivo. Pelo menos foi isso o que os estudantes nos explicaram para justificar as brincadeiras que faziam com os novatos. Eles estavam enfileirados num pátio e eram obrigados a percorrer as ruas do campus, cantando e dançando uma dança muito esquisita. Mas não estavam envergonhados, pelo contrário, se divertiam também e riam muito. Abaixo, foto dos veteranos com suas togas, dos telhados coloridos da universidade, do prédio da Faculdade de Medicina e do portal da Igreja de São Miguel.



A Real Capela de S. Miguel

Não é permitido tirar fotos no interior dessa igreja. Quem quiser conhecê-la terá mesmo de ir até lá. E não vai perder a viagem, porque ela é belíssima. Foi construída no início do século XVI. Quando a universidade adquiriu o Palácio Real da Alcáçova para se instalar definitivamente em Coimbra, levou junto essa capela, que manteve o privilégio Real. O que isso significa, não sei. Provavelmente, a Real capela de São Miguel deveria ser frenquentada pela família real, com exclusividade ou não. Pode ser isso.

Mas me contaram, orgulhosos, que, no dia 25 de novembro de 1663, dia de Santa Catarina, foi o Padre António Vieira quem celebrou a missa e proferiu mais um de seus brilhantes sermões, esse dedicado à santa, padroeira da Universidade de Paris e invocada como protetora dos filósofos. O tomo 2 do Sermões - Padre António Vieira, lançado em 2003 pela editora Hedra e organizado por Alcir Pécora, traz a íntegra desse sermão. Só para situá-los: Catarina era filha de nobres e viveu na Alexandria nos primeiros séculos da era cristã. Bonita e inteligente, foi pedida em casamento pelo imperador romano Maxêncio. Mas ela rejeitou o pedido, reafirmando a sua intenção de dedicar a vida a Deus. O imperador, enfurecido, convocou 50 filósofos para convencê-la de que Cristo não poderia ser o filho de Deus. Catarina, além de ter conseguido responder os questionamentos dos filósofos, converteu-os ao cristianismo, enlouquecendo o imperador que mandou-a matar.

No sermão, Vieira toma Santa Catarina como modelo de sabedoria e destaca da sua pregação três dificuldades que enfrentou quando teve de debater com o conselho de filósofos: o fato de estar sozinha contra muitos opositores; de ser mulher e ter de convencer aos homens; e a resistência dos intelectuais da sua época de reconhecê-la por mestre entre os sábios. Conforme diz o texto de Alcir, na apresentação deste sermão, Vieira, na sua fala, exorta os universitários de Coimbra a imitarem duas qualidades dos filósofos, que reconheceram a verdade dos argumentos de Santa Catarina: a docilidade, isto é, a conformidade com a verdade, e a constância, que os levou à morte, por resistirem à vontade do Imperador. Vale a pena ler o sermão de Santa Catarina - Virgem e Mártir, pela beleza dos textos de Vieira, pela sua sabedoria e, quando nada, só pela sua introdução, bastante oportuna para o momento que vivemos. Nela, Vieira fala sobre a expressão Ne forte, que adota como argumento do seu discurso.

Ne forte? Quer dizer: para que não por algum caso; para que não por alguma desgraça; para que não por algum descuido próprio, ou diligência e indústria alheia. É, Ne forte um advérbio, sempre vigilante, mas indeciso: é uma suspensão do que é: é uma dúvida do que será: é um cuidado solícito do que pode ser. É um receio temeroso do futuro, não esquecido do passado, nem divertido do presente; e neste círculo de todos os tempos acautelado para todos. Deriva-se a palavra Ne forte daquela que o mundo chama Fortuna, e é uma força tão poderosa e tão forte, que desarma a mesma fortuna de todos os seus poderes; porque a quem estiver cuidadoso do que ela pode fazer ou desfazer, nunca lhe acontecerá que diga - não cuidei - máxima da Prudência.


E por aí afora vai, até chegar à história de Catarina, quando Vieira retoma a expressão Ne forte para compará-la à expressão Si forte, respondida por Catarina ao imperador rejeitado. E Vieira explica que, se Ne forte é advérbio seguro e frio, o Si forte é animoso e ardente. O primeiro fecha as portas ao temor, o segundo, abre-as à esperança. O primeiro é freio para a cautela, o segundo, espora para a ousadia. Ne forte diz: Não te arrisques; Si forte diz: Aventura-te. Finalmente, como explica Vieira, o primeiro tem por efeito evitar o mal, que suspeita; e o segundo, empreender e conseguir o bem a que aspira. Mais ou menos isso. E não é esse o dilema que vivemos hoje para tentar compreender as barbaridades que temos assistido? Quem deles está a nos dizer Ne forte ou será Si forte? Ou não pensam mais nisso, apenas se enfrentam por um pedacinho de terra?

A Biblioteca Joanina

As visitas à Biblioteca Joanina são guiadas, cronometradas e cheias de não me toques. Isso não é uma crítica. Concordo plenamente com todas as restrições e acho que a simples entrada na Casa da Livraria, como era conhecida anteriormente, é um ato de grande boa vontade da universidade para com nós, pobres mortais ignorantes. E a possibilidade de consulta às publicações ali guardadas, uma prova, rara reconheço, mas uma prova da generosidade da academia para com seus pares. Um privilégio. Essa generosidade se mostra ainda maior quando a universidade nos oferece a possibilidade de obter, por meros 10 ou 15 euros, não me recordo mais, um cd com as imagens do interior do prédio e o texto integral das principais obras ali preservadas. Não vou piratear o cd para ninguém, não faria isso: tirar de vocês a chance de experimentar a emoção de entrar ali pela primeira vez, de corpo e alma, e apreciar, com seus próprios olhos, a fantástica construção de 1717 e imaginar, com toda força da nossa criatividade, as mil e uma histórias que se escondem dentro daqueles livros? Nunca! Na foto, a porta de entrada da Biblioteca.

Para nós, foi uma benção poder estar ali e ser convidados para entrar naquele templo. Tivemos de esperar uns 30 minutos, até que um grupo saísse e o nosso fosse liberado para entrar, mas nem percebemos a demora. Quando as portas se abriram, foi como se entrássemos num sonho. O prédio tem três andares, mas o acesso está liberado apenas para o primeiro piso, onde estão acomodados cerca de 40 mil volumes dos 200 mil da coleção da Biblioteca. É impressionante a qualidade da conservação de cada uma dessas obras. Quem tem livros em casa sabe bem como eles se deterioram facilmente. Principalmente, quando ficam pegando poeira nas estantes por anos a fio.

Mas o edifício é uma perfeita caixa-forte, proporcionando um ambiente absolutamente estável no seu interior e favorável à preservação das obras, ao longo de todo o ano, como explicou nossa guia. De fato, a temperatura no interior da Biblioteca Joanina é constante, faça chuva ou faça sol. Varia em torno de 18° a 20° C e a umidade relativa do ar se mantém, da mesma forma, em torno de 60%. Para obter essas condições, as paredes exteriores do edifício tem uma espessura de 2 metros e 11 centímetros e seu interior é revestido, integralmente, com madeira, apesar de dar a impressão de que suas colunas e teto são de mármore ou de qualquer outra pedra. Mas a conservação deste acervo tem outros segredos. Para enfrentar um dos maiores inimigos dos livros, os insetos papirófagos, todas as estantes da Biblioteca são de madeira de carvalho, que, além de serem extraordinariamente densas, dificultando a penetração dos bichinhos, exala um odor bastante providencial, que os repele, mantendo-os distantes dos livros.

Se, ainda assim, alguns desses insetos desenvolverem uma resistência à ação do carvalho, ficarão surpresos com a inventidade dos primeiros gestores da Casa da Livraria. Pensando nisso, eles já tinham providenciado outras estratégias para, em qualquer situação, saírem vitorioso dessa luta inglória. Desde os primeiros tempos, uma colônia de morcegos habita a Biblioteca e, durante a noite, dão cabo dos bichinhos mais resistentes que, eventualmente, aparecem por ali. E para cuidar dos morcegos e evitar que sujem os móveis e livros da coleção, todos os dias, ao fechar a Biblioteca, um funcionário cobre todas as mesas com toalhas de couro e, pela manhã, retira-as e limpa toda a biblioteca. Todos os dias! Já pensaram?

Mas esses cuidados, com já disse, não impedem os pesquisadores de consultarem esse acervo. Quando uma obra é solicitada, o exemplar é transferido para a Biblioteca Geral da Universidade, por um funcionário, ficando lá à disposição do pesquisador. Olhem só! A UFMG, por exemplo, tem um acervo bastante interessante e muito requisitado sobre as obras e anotações de Guimarães Rosa. A consulta a esse material não é proibida, mas são tantos obstáculos a serem vencidos que ouso dizer, sem remorso, que é quase impossível para o pesquisador ter acesso a esse acervo e humanamente impossível para nós, pobres mortais. São esses pequenos detalhes que fazem a diferença. Ou não?

Para ninguém ter dúvidas de que essa possibilidade de consulta às obras da coleção da Biblioteca Joanina é uma condição rotineira, observem a foto acima. Por acaso estávamos ali, por acaso alguém precisava consultar uma obra deste acervo e, por acaso, a transferência do livro estava sendo feita exatamente no momento em que passávamos por lá. É assim que funciona. Observem o tamanho dos livros daquela época. Eram grandes verdades que estavam sendo ditas, não é não? Hoje, preferimos os livros de bolso, pequenas verdades, uma de cada vez. Também tem suas vantagens.

A Sé Nova, que no passeio ao lado da universidade e foi fundada pelos jesuítas em 1598
Hora de almoçar!
Até parece que só pensávamos em comida nessa viagem! De fato, não dispensamos um bom prato, mas a essa altura do dia já eram quase duas horas da tarde e ainda estávamos só com o café da manhã, duas garrafinhas de água e uma barra de cereal. Ninguém aguenta, né? Na saída da Universidade de Coimbra registrei mais algumas frases que estão publicadas nas paredes da cidade. São parecidas com as nossas, vejam só:


Para voltar a Cidade Baixa, pegamos uma espécie de elevador, que desliza ladeira abaixo em cima de trilhos e atende toda a comunidade, especialmente os estudantes. Não é baratinho, mas facilita muito a vida. Abaixo, uma vista da cidade do alto desse elevador. É linda mesmo!

E foi nesse elevador que ficamos conhecendo o senhor José Girão. Ele descia conosco e comentávamos sobre a beleza da cidade. A conversa, mesmo rápida, rolou num clima tão bom que resolvemos consultá-lo sobre um lugar gostoso onde pudéssemos almoçar. Seu Girão tinha não apenas uma, mas várias sugestões e se dispôs a nos guiar até elas para que nós pudéssemos fazer a nossa própria escolha. Passamos por dois restaurantes, mas o que mais nos interessou foi o terceiro, O Cantinho dos Reis.
Seu Girão foi muito delicado com todos nós. Enquanto caminhávamos, ele nos contou um pouco da sua vida, da história da cidade e das suas inquietações com o mundo de hoje. Policial aposentado da guarda salazarista, é uma pessoa sensível e alegre. Hoje participa do grupo folclórico da cidade, junto com sua esposa, responsável pela confecção das roupas do grupo e também cantora. Viajam a Europa inteira: já estivemos até em Kosovo! Um lugar muito bonito, mas triste, não é? Não fomos ainda ao Brasil, porque minha mulher tem medo de avião! Seu Girão também escolheria O Cantinho dos Reis, como nos confessou. É uma comida farta, saborosa e barata. A refeição custa 6,50 euros, com uma entrada, o prato principal, sobremesa e um refrigerante ou uma jarra de vinho, além do café. Poderia ser melhor?
O Restaurante O Cantinho dos Reis fica no Terreiro das Ervas, com entrada pela rua Sofia. É um sobrado, com mesas no segundo andar para os clientes velhos de casa e uma varanda improvisada no terreiro, onde ficam as mesas dos fumantes e do público flutuante. Ficamos ali, junto com um grupo enorme e muito alegre de turistas suiços. Desconfio que pertençam também a algum grupo folclórico do seu país, pois cantavam muito e tocavam flautas e gaitas, divertindo todos que estavam ali. Se conseguir, vou postar o vídeo do grupo logo abaixo.
Dessa vez não aprendi nenhum novo segredo da cozinha portuguesa, mas descobrimos um prato delicioso: as alheiras. O nosso cardápio foi o seguinte: sopa de legumes, arroz de marinheiro (com frutos do mar), mãozinha de vitelo com grão de bico e, a novidade, alheiras. Tomamos uma jarrinha de vinho e os meninos experimentaram mais um refri diferente, o Frisumo, uma mistura de fanta com Sumol. Dispensei a sobremesa e fui direto ao café, mas os rapazes ainda experimentaram um pudim que me pareceu ótimo e todos confirmaram.

O Terreiro das Ervas e a varanda improvisada
As alheiras são uma espécie de linguiça artesanal, mas bem diferentes. Sua execução tem um grau alto de dificuldade para arriscarmos fazê-las em casa, como se fosse um macarrão ao molho de tomate. Nem ouso. São feitas de tripa de porco bem finas, recheadas com pão, azeite, alho, carne de porco e, às vezes, de aves. Tudo é bem triturado e embutido, como se fosse uma linguiça. Mas as alheiras são fritas em óleo bem quente para a tripa se desmanchar e o que vai para mesa é só o recheio. Muito bom mesmo! Em Belo Horizonte, descobrimos depois, o Frios Delícias também faz alheiras, mas em vez de carne de porco, o toque especial do seu recheio é o bacalhau. Bom também! Já experimentamos.
Nem é preciso dizer que depois desse banquete todo bateu uma preguiça sem mãe. Mas nada que uma boa caminhada pela rua Sofia até a Praça 8 de Maio não dispersasse. Foi o que fizemos. Abaixo, a foto da loja de instrumentos musicais que os rapazes visitaram. Ficaram um bom tempo conversando sobre violas, bandolins e cavaquinhos. A segunda foto é de um beco que desemboca na praça.

As fotos abaixo são da Praça 8 de Maio. É o ponto de encontro dos moradores, especialmente os mais velhos. Diferentemente dos nossos idosos, esses senhores e senhoras aproveitam o tempo livre para se encontrar, ver a rua, as pessoas e colocar a conversa em dia. Não ficam trancafiados dentro de casa esperando a morte chegar. Eles sabem viver. Mas senti muita falta de ver crianças correndo nas praças, gritando, fazendo bagunça. Não vi isso em nenhuma das praças das cidades por onde passamos. É muito estranho mesmo.
A primeira foto é uma vista geral; a segunda mostra o carrinho de castanhas (esses não podem faltar!); a terceira, a loja de flores; e a última, o prédio da Câmara.



E enquanto os rapazes tentavam contato com o Brasil, acessando a internet por meio de uma rede aberta, fui visitar a igreja de Santa Cruz, que fica junto a praça. É uma construção muito bonita de 1131. Seu interior é simples, não tem a riqueza do ouro das nossas igrejas, mas é ornada com murais de azulejo pintados, representando passagens da vida de Jesus que são lindos. Tem também um órgão vermelho, que parece obra de esculturos chineses. Aliás, os chineses, de fato, passaram pela cidade e fizeram belos trabalhos na Biblioteca Joanina, talhando na madeira motivos chineses, cenas do cotidiano do seu povo e paisagens. Há registros de todos os artistas que trabalharam na Biblioteca, como a do italiano, que agora me fugiu o nome, responsável pela pintura dos tetos. Mas ninguém sabe o nome dos escultores chineses. São artistas anônimos. Atribuo à dificuldade da língua, pois não posso acreditar que os considerassem artistas menores. Abaixo, a foto de pare da fachada da Igreja de Santa Cruz, onde os dois primeiros reis de Portugal, Afonso Henriques e Sancho I, estão enterrados; e do órgão vermelho.


Voltamos para o hotel já bem no final da tarde e saímos novamente só para fazer um lanche e experimentar os pastéis de Tentúgal, uma especialidade da região. São feitos de ovos também, mas não são tão bons quanto os de Belém e de Santa Clara. Tem um gosto mais forte, parecido com o de ovo mexido com açúcar. Abaixo, foto dos pastéis de Tentúgal e dos anjos que enfeitam a rua Sofia.

Voltando para o hotel, fizemos ainda mais uma caminhada no Parque Manuel Braga e assistimos ao pôr do sol em Coimbra, que é lindo como em todos os lugares do planeta.




No dia seguinte, acordamos cedo para pegar estrada novamente. O dia estava fechado e uma neblina fina cobria o Rio Mondego e toda a cidade. Passamos na lanchonete para tomar o café e abastecer de água e cigarro. Tem uma coisa, não é muito simples comprar um maço de cigarros em Coimbra. Ou é, não sei. O fato é que ninguém quer se comprometer com esse vício horroroso e transferem a irresponsabilidade para uma máquina, como essa ao lado. Aí é preciso ter o dinheiro trocadinho, moedas de preferência, e se contentar com as opções disponíveis. Mas, enfim, ainda é possível encontrá-los.
De uma próxima vez, espero não estar mais fumando e antes de baixar no primeiro Ibis que encontrar pelo caminho, vou pesquisar as hospedarias caseiras, como a Pensão Residencial Jardim, que fica bem ao lado do hotel. As fotos abaixo mostram cenas da cidade na nossa saída. A ponte de Santa Clara também estava coberta de neblina e o mesmo barco que encontramos na chegada, continuava lá, pronto para ser fotografado, agora, escondido no meio da bruma. Enfim, como não tinha outro jeito, pusemos o pé na estrada, rumo ao Porto.



segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Pé na estrada - 13/10

Vista da Avenida da Liberdade com rua Alexandro Herculano
Vou procurar concluir mais rápido esses relatos de viagem, antes que minhas lembranças se embaralhem em outras histórias e se percam por aí. Mas não vou me impor metas nem fazer planos. Essa foi uma das coisas que aprendi nessa viagem. Não vale para tudo na vida, mas vale para muitas situações. É muito melhor, por exemplo, viajar sem planos, sem roteiros previamente concebidos, hotéis reservados, restaurantes com hora marcada e cartão de ponto. Claro que um planejamento básico é necessário, ao menos para apontar rumos, mas isso é o suficiente. Depois de uns dias, deixar que as coisas aconteçam é muito melhor. Sem planos para dar errado, tudo só pode mesmo dar certo e dá.

Quando saímos do Brasil, por exemplo, sabíamos que ficaríamos três dias em Lisboa. Na primeira segunda-feira, sairíamos de Lisboa em direção ao Norte, para o Porto ou Coimbra, de ônibus, de trem ou de carro, pelo litoral ou por algum caminho pelo interior de Portugal. Era tudo que sabíamos, no mais, deixamos para decidir quando chegasse a hora. Assim, na segunda, 13 de outubro, acordamos descansados e descemos para o café livres como um passarinho, como dizia minha avó, prontos para decidir qualquer coisa. E entre um pãozinho com geléia, um suco, um café, um bolo e outras quitandas, começamos a analisar as possibilidades: ônibus, trem ou carro. E não foi preciso muita conversa para concluirmos que, em nome da liberdade, o melhor seria alugarmos um carro. Em prol da liberdade e da curiosidade. Os rapazes estavam loucos para pegar um carro e rodar pelas estradas do mundo.

Enquanto eu fechava as malas, eles foram providenciar o nosso possante. Em poucos minutos estavam de volta com o Leon, um Seat, da Volkswagem espanhola. Não vi muita diferença em relação aos nossos carros, mas homens tem uma capacidade excepcional para perceber detalhes quando se trata de analisar o desempenho de um carro. Não são capazes de observar um objeto que muda de lugar dentro de uma casa ou de perceber uma mudança no corte de cabelo de uma mulher, mas descobrem rapidamente a diferença de uma luzinha no painel de um carro, o peso de um pedal, a desenvoltura de um motor e outros pormenores que nem saberia listar. É impressionante como são detalhistas. Mas seja como for, essa escolha foi uma boa pedida mesmo e ficou até mais econômica que uma viagem de trem ou de ônibus.

Deixamos o hotel por volta de meio dia e seguimos a primeira estrada que encontramos em direção a Coimbra, a chamada A1. Não dá para ficar comparando essas estradas com as nossas, porque tudo é muito diferente. Não é só o fato de não termos topado com nenhum buraco ao longo de todo o caminho que as fazem melhores que as nossas, mas o seu traçado, a sinalização, as faixas de velocidade e a educação dos motoristas, tudo isso somado é que torna a viagem muito mais segura e tranqüila.
A nossa primeira parada, depois de uma hora e pouco de estrada, foi em Santarém. Para variar, estávamos com fome e com sede e precisávamos nos abastecer urgentemente. Viajar com adolescentes tem dessas coisas. Mas Santarém entrou nos nossos planos por outro motivo também, é lá que se encontra a lápide de Pedro Álvares Cabral, ao lado da Igreja da Graça, no largo Pedro Álvares Cabral. Lemos isso no Guia da Folha de São Paulo, enquanto ainda estávamos na estrada.

Assim que entramos na cidade, passando pelo Mercado Municipal, vimos uma igreja no alto de um morro e fomos direto para lá. Deveria ser ali, imaginamos. E paramos, olhamos, pesquisamos, mas estava tudo fechado. Claro que estávamos enganados. Aquela era a Igreja do Convento de Santa Clara. Não perdemos a caminhada, porque mesmo vendo só por fora, é uma construção muito bonita que vale a pena conhecer, mas não era o que procurávamos. Voltamos para o carro e continuamos nossa busca, entramos e saímos de becos, passamos pelos fundos da Igreja da Graça, voltamos, cortamos outros becos, mas não conseguimos parar para ver o túmulo de Pedro Álvares Cabral. Paciência, também a vontade não era assim tão grande, a fome é que era maior. As fotos são da Igreja de Santa Clara, de um casarão com fachada de azulejos e da torre de uma outra igreja que não sei bem qual é e me esqueci também de perguntar. Foi mal.





Na primeira praça com vaga para estacionar que encontramos, paramos. E foi uma boa idéia. Sentamos na Pastelaria Bijou e fomos muito bem servidos por um garçon, dessa vez português mesmo, que nos trouxe bolinhos de bacalhau e as famosas chamuças, um pastel indiano que, no Brasil, chamamos samosa. Acreditamos que essa é uma contribuição da culinária de Goa para a cozinha portuguesa. Goa é o menor dos estados indianos e o quarto menor em população, mas o mais rico em PIB per capita da Índia e esteve sob o domínio de Portugal de 1510 até quase o início dos anos de 1970. Hoje, a sua língua oficial é o concani, mas ainda existem pessoas ali que falam o português.

Quem tiver interesse de conhecer o sotaque dos indianos de Goa vale a pena ver o documentário Língua - Vidas em Português, do moçambicano, residente no Brasil, Victor Lopes. Ele percorreu cinco países - Brasil, Portugal, Moçambique, Índia e Japão, para mostrar as diferentes versões do português falado pelo mundo a fora, com depoimentos fantásticos, como os de Mia Couto e de José Saramago, mas, principalmente, os de pessoas do povo, como Dinho, um jovem moçambicano, que canta rap e sonha um dia morar nos Estados Unidos. O seu depoimento é poesia pura, apesar da dureza da vida. O documentário é também uma oportunidade para conhecermos os costumes desses povos e nos vermos em cada um deles, seja na música, no modo de vestir, no jeito de estar no mundo, na culinária, na pobreza, na riqueza e na diversidade e não só na língua. Não percam!


Voltando para a mesa do Bijou, foi lá também que experimentamos os pasteizinhos de Santa Clara (vejam as fotos acima). Concordamos que esses eram os originais do Convento de Santa Clara, evidentemente. Um dos rapazes ficou na dúvida e custou a prová-los, temendo que a cobertura torradinha fosse côco ralado, que ele odeia com força. Mas o caçula, com toda sua sapiência, esclareceu:
- Não é côco não, é torro, Dani!
- Ah, e o que é torro?
Vai saber, né? Mas, não sendo côco, tudo vale a pena e ele acabou experimentando e nos apoiando: esses são, de fato, os verdadeiros pastéis de Santa Clara. Aprovado! E ainda ficaríamos mais tempo por ali, apreciando a fachada da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, que fica à direita da praça da Pastelaria Bijou, não fossem as aranhas. Isso mesmo, Santarém tem um mundo de aranhas, que vagueiam pelos ares e se agarram em nossos cabelos, nos braços, no rosto, sem mais nem menos, saindo do meio do nada. É muito estranho como elas aparecem de repente e se vão sem sabermos para onde. E para não corrermos o risco de cairmos como presa nas teias dessas aranhas, resolvemos pegar a estrada novamente. Deixamos para trás algumas coisas por fazer em Santarém. Serão desculpas para ter uma próxima vez. Deixamos a lápide de Pedro Álvares Cabral e o Jardim das Portas do Sol, cercado por muralhas medievais e de onde se avista uma bela paisagem do rio Tejo ladeado por uma vasta planície.

Mais uma hora e pouco de estrada, chegamos ao Santuário de Fátima. Perdemos a festa do dia 12 de outubro, mas ainda pegamos alguns peregrinos retardatários. A basílica de Fátima fica em uma esplanada duas vezes maior que a Praça de São Pedro, em Roma, e quando entramos no pátio senti uma força inexplicável, como uma benção mesmo. Apesar da descrença de um amigo, que acha essa história dos Segredos de Fátima uma invencionice de criança e da minha fé desconfiada, foi uma sensação muito especial e nunca vou me esquecer disso. Pode ser que Lúcia, Jacinta e Francisco nunca tenham visto Nossa Senhora e que ela nunca tenha contado a eles os três segredos de Fátima, mas a fé daqueles que acreditam é muito maior e mais poderosa que a própria história e acho que foi essa fé que nos rodeou quando entramos no Santuário.
Não vou repetir a história dos três pastorinhos, que todo mundo já está careca de saber, mas tenho de registrar um relato que li no Guia Turístico de Portugal de A a Z, da editora Dom Quixote, que minha irmã me emprestou e que é muito interessante. O nome de Fátima, onde fica o santuário, diferente do que eu pensava, é muito anterior à aparição de Nossa Senhora, na Cova de Iria. Conta a tradição local que Fátima era o nome de uma moura raptada por Gonçalo Hermingues, cavaleiro templário conhecido por Traga-Mouros, na véspera de São João Baptista, no dia 23 de junho de 1158. A jovem, ao converter-se à fé cristã, trocou o nome de Fátima pelo de Oureana. Após a morte prematura da esposa, o Traga-Mouros virou monge e fundou um mosteiro na freguesia de Olival. Bem ao lado do mosteiro, ergueu-se um povoado, que o monge chamou de Fátima, para perpetuar o nome original da esposa falecida. Ou seja, Fátima e Vila Nova de Ourém, também vizinha de Olival, são homenagens de um marido apaixonado. Já a primeira aparição de Fátima para os três pastorinhos só aconteceu em 13 de maio de 1917 e a construção do santuário data dos anos de 1950. Curiosidades.


Voltando ao Santuário, não me lembro dos detalhes do interior da basílica de Fátima, lembro apenas que ela estava lotada e que ficamos lá dentro um tempo e que rezamos e agradecemos tudo de bom que temos na vida e depois saímos e visitamos um campo de oliveiras, que fica bem ao lado da basílica e encontramos vários grupos de fiéis rezando, vindos de todas as partes do mundo. Lembro também dos dois anjos, belíssimos, que guardam a torre da basílica e da coroa de bronze, com 8 toneladas de peso, que brilha no alto dos 65 metros de altura dessa torre.






Não vimos a Capela das Aparições e nem a Casa dos Pastorinhos. Deixamos para uma próxima vez, quem sabe?


Além disso, estava ficando tarde e não queríamos pegar estrada à noite. Coimbra nos esperava, mas essa é outra história, que se der tempo, conto amanhã.