Saímos de Belo Horizonte na tarde de quinta-feira (9), às 5 e pouco da tarde. Fomos direto para Lisboa, pela TAP. São nove horas de vôo. Me advertiram que os comes e bebes do avião não eram lá essas coisas e que seria bom levar uma matula, principalmente por causa dos meninos. Adolescentes, já viram, comeriam até a mesa, se necessário fosse. Segui o conselho, mas só mais ou menos. Levei batatinhas rufles e água. Mas não precisamos. A comida, de fato, não era boa, comida de avião mesmo, mas também não era intragável. Acho que demos até sorte, porque achei tudo muito bom.
O avião estava lotado. Parecia um buzão. Tinha uma turma de jovens de uma igreja que não me lembro mais qual, uma turma de terceira idade, avulsos tentando a sorte e turistas deslumbrados, nós, por exemplo. Mas a viagem foi divertida. O computador de bordo funciona! Podíamos escolher filmes - de documentários a desenhos animados; joguinhos; músicas; ou um simulado do vôo. Esse foi o que mais gostei. Dá muita segurança saber exatamente por onde você está passando. Pegamos uma leve turbulência apenas quando atravessávamos o oceano. Parece que é um fenômeno natural, pois na volta passamos pela mesma estrada esburacada na mesma altura do vôo.
Desembarcamos em Lisboa às 6 horas e 30 minutos da manhã de sexta-feira (10), horário local. Nossos relógios, no entanto, marcavam 2 horas e 30 minutos da madrugada. Parecia que estávamos saindo de uma balada arretada, já completamente ressaqueados. E ainda tivemos de enfrentar a fila da imigração, nos arrastando como vermes sonâmbulos, até pegarmos um táxi em direção ao hotel, na Avenida Liberdade. A sorte é que nossos quartos já estavam liberados e pudemos tomar um farto café da manhã e nos acomodarmos, antes de iniciarmos a peregrinação. Vocês não vão acreditar, mas ao vermos as camas ali, arrumadinhas, convidativas, não resistimos.
Achei razoável puxarmos uma soneca até a hora do almoço, afinal, feriadões são para isso também e Lisboa podia nos esperar. E esperou. Às 13 horas estávamos na porta do hotel, prontos para bater perna até quando aguentássemos. Descemos a Avenida Liberdade, famintos, mas já com a disposição de qualquer turista para apreciar todos os detalhes: os prédios, os carros, as obras, as calçadas, o povo, tudo. A Avenida Liberdade deságua exatamente na Praça dos Restauradores. Depois do terremoto de 1755, que reduziu mais da metade da cidade a pó, o Marquês de Pombal, esse é o cara, criou um Passeio Público exatamente nessa área. Apesar do nome, o passeio era cercado e apenas a alta sociedade circulava no pedaço. Só em 1821, com a chegada dos liberais ao poder, a área foi aberta ao povão.
Chegamos a Praça dos Restauradores quase sem percebê-la. As grades, de fato, não existem mais, mas algumas partes estavam escondidas atrás de tapumes. Aliás, Portugal está em obras. Por todos os lugares por onde passamos, homens e máquinas remexiam alguma coisa a pleno vapor. No final da tarde, fizemos um registro da fachada da Estação Central, que fica ao lado da Restauradores. Foi pelo menos um registro. Mas não vimos a praça, principalmente, porque só tinhámos olhos para o Rossio, onde pretendíamos almoçar. Em Portugal, como no Brasil, as praças e avenidas tem nomes, mas são conhecidas por seus apelidos. Com o Rossio acontece isso também. Formalmente, como lemos no Guia da Folha de São Paulo, é chamada Praça de Dom Pedro IV ou Dom Pedro I, o primeiro imperador do Brasil independente, mas a área é conhecida como Rossio. É o centrão de Lisboa. Hoje, as duas grandes atrações da praça são o Teatro Nacional Dona Maria II, construído em 1840, e o Café Nicola, onde pretendíamos almoçar.
O Café Nicola foi fundado pelo italiano Nicola Breteiro em algum momento do século XVIII e é um dos cafés mais antigos de Lisboa. Era frenquentado por intelectuais e escritores, como o poeta Manuel Barbosa du Bocage. Nosso plano A era o de almoçar exatamente no Nicola, mas o café estava lotadérrimo e ninguém queria esperar mais. Na verdade, estávamos prestes a desmaiar ou destampar uns com os outros, de tanta fome. Assim, decidimos, por força da circunstância, nos sentarmos ao lado, no Pic Nic. Achei lamentável, mas depois me recuperei. Primeiro, porque pedi um bacalhau ao forno que estava divino, apesar do pouco sal. Mas aprendi que, em Portugal, todos os pratos são muito menos salgados do que os nossos e os doces muito menos doces.
Também não foi má escolha, porque depois descobri que o Pic Nic não é um lugar assim tão deplorável. Foi fundado em 1915, está prestes a completar 100 anos. Isso no Brasil, especialmente em Belo Horizonte, é a glória suprema. Em Belo Horizonte, diariamente, são inaugurados e fechados mais de uma dúzia de bares. Os poucos sobreviventes, os mais antigos mesmos, como a Cantina do Lucas e o recém reinaugurado Chez Bastião, se tiverem 50 anos será o máximo. Bom, mas Pic Nic é o apelido deste café, pois seu verdadeiro nome é Leitaria Luso-Central. É chique também, né? Outro bom motivo para conformar com a escolha foi, principalmente, porque da mesa onde estávamos avistávamos o Rossio, em toda sua grandeza e em todos os seus detalhes e fauna, maravilhosos. Reparem acima o detalhe das luminárias que rodeiam a praça e de uma de suas fontes, com o teatro ao fundo. Bem no cantinho à esquerda, vocês poderão observar as máquinas que estão trabalhando na Restauradores. É obra pesada mesmo. Lamentei não ter me informado sobre esses trabalhos. Desconfio que estão refazendo alguma rede subterrânea que desce a Avenida Liberdade.
Depois do almoço, resolvemos iniciar a nossa caminhada. Subimos a Rua do Carmo à pé para não perder nada. Poderíamos ter ido de bondinho, instalado bem ao lado do Rossio, fazendo as vezes de um elevador, mas preferimos chegar ao Chiado aos poucos, percorrendo todos os caminhos que tínhamos direito. Se não fôssemos assim, não veríamos a Luvaria Ulisses.
Pensem bem, uma loja especializada na venda de luvas! Onde poderíamos ver isso em Belo Horizonte? E reparem a fachada da Joalheria do Carmo, bem ao lado. Sofisticadérrima! Ainda desfrutamos um pouquinho da Livraria Lelo, na sua filial de Lisboa. Não tem o charme da loja do Porto, mas é boa também. E nos fartamos de orgulho, igual bobos, só porque vimos uma Richard e uma Osklen, bem no final da subida da Rua do Carmo. Brasileiro é besta mesmo, mas dá uma pontinha de orgulho sim, afinal duas marcas brasileiras, no centro de Lisboa, em plena Europa, ditando moda! É para nos gabarmos. Ou não?
Mas fomos em frente. O objetivo era chegarmos a Rua Garret, para visitarmos a Livraria Bertrand e o Café A Brasileira, frequentado, entre outros joões e manuéis, por Fernando Pessoa. Sentimos um pouco a caminhada, mas quando avistamos o B vermelho, reluzindo na nossa frente, foi muito emocionante. A frente da livraria não dá idéia do seu tamanho. É enorme e com uma boa variedade de títulos. As paredes laterais azulejadas são ainda mais bonitas que a porta central. É claro que registramos. Mas como era o primeiro dia, resistimos bravamente e não compramos nem uma agulha. Nem A Filosofia Segundo Woody Allen, da Editora Estrela Polar, teve o poder de nos dissuadir. Lambisquei algumas páginas e anotei a frase da capa: Se Deus existe, espero que ele tenha uma boa desculpa.
Desfrutamos um bom tempo na Bertrand. Os meninos não se entediaram com a visita. Também se perderam no meio dos livros e folhearam algumas obras. Mas não pediram nada. Estavam fechados com o nosso objetivo. Agora, vou confessar uma coisa: fiquei um pouco decepcionada com o atendimento. Foram todos muito educados e atenciosos. Não foi esse o problema. Acontece é que os rapazes são todos muito novos e não dominam a profissão de livreiro como deveriam. Fiz uma consulta de um livro que gostaria de trazer para o meu pai. Ninguém dava notícia da sua existência. Consultaram até o Google e não conseguiram resolver o meu problema. Não era um livro qualquer, era um clássico da literatura portuguesa. Enfim, hoje o mundo é dos mais jovens. Quem manda eu sair atrás de velharia.